Força essencial
União da Filosofia e do Espiritismo
Pelo Sr. M. Herrenschneider – 2o artigo34

O PRINCÍPIO DA DUALIDADE DA ESSÊNCIA DA ALMA E O SISTEMA ESPIRITUAL DO SR. COUSIN E DE SUA ESCOLA

No artigo anterior procuramos provar que se, em geral,os senhores livres-pensadores quisessem dar-se ao trabalho de examinar os motivos que lhes permitem afirmar-se, de dizer “eu”, chegariam ao conhecimento de sua dupla essência; convencer-se-iam de que sua alma é constituída de maneira a existir separadamente do corpo, tão bem quanto em seu envoltório, e compreenderiam a sua erraticidade quando, após a morte, ela tivesse deixado a sua matéria terrestre. De sorte que sua ciência, se fosse baseada sobre o verdadeiro princípio da constituição da alma,confirmaria os fatos espíritas, em vez de os contradizer com tanta persistência. Com efeito, nossa noção do eu compõe-se principalmente do sentimento e do conhecimento que temos de nós mesmos, e esses dois fenômenos íntimos, evidentes para todo o mundo, implicam peremptoriamente dois elementos distintos na 34 Vide a Revista de setembro de 1863. alma: um passivo, sensível, extenso e sólido, que recebe as impressões; outro ativo, sem extensão e pensante, que os percebe. Em conseqüência, se possuímos, ao lado de um elemento virtual,um elemento resistente e permanente, diferente do nosso corpo, não podemos dissolver-nos pela morte; nossa imortalidade está provada e nossa preexistência é uma conseqüência natural. Nossos destinos, portanto, são independentes de nossa morada terrestre, e esta não passa de um episódio mais ou menos interessante para nós, conforme os acontecimentos que a enchem.

A dualidade da essência de nossa alma, de acordo com tais observações, é um princípio importante, pois nos instrui sobre a nossa existência real e imortal. Mas é um princípio tanto mais importante quanto é a fonte única em que haurimos a consciência certa de nossa individualidade, sendo assim a origem de nossa ciência, da qual não podemos duvidar, e sobre a qual repousa todo o resto dos nossos conhecimentos. Efetivamente, começamos todos por nos conhecer, antes de perceber o que nos rodeia; e medimos por nossa medida tudo o que examinamos e julgamos. Assim, é indispensável observar, para o estudo da verdade, que nosso saber parte de nós, para voltar a nós; que há um círculo formado por nós mesmos, que nos envolve e nos enlaça fraternalmente, mau grado nosso. Os filósofos atuais o ignoram e o sofrem sem se aperceberem. É ele que os ofusca, que os cega e os impede de olhar além e acima deles. Assim, teremos muitas oportunidades de constatar sua cegueira. Ao contrário, os Antigos conheciam esse círculo e sua influência misteriosa, pois simbolizavam a Ciência sob a figura de uma serpente mordendo a própria cauda, depois de ter-se dobrado sobre si mesma. Aos seus olhos isto significava que nosso saber parte de um ponto dado, faz a volta de nosso horizonte intelectual e retorna ao ponto de partida. Ora, se esse ponto de partida for elevado e o olhar for penetrante,o horizonte será largo e a ciência vasta; se, ao contrário, o solo for raso e a visão turva, o horizonte será restrito e limitada a inteligência das coisas. Desse modo, tais quais formos pessoalmente, tal será o conjunto e o alcance dos nossos conhecimentos. Por este motivo torna-se evidente que a primeira condição da ciência individual é a de examinar-se a si mesmo, não só para distinguir suas qualidades, seus defeitos e seus vícios, mas, antes de tudo, para conhecer a constituição íntima do nosso ser e,depois, para elevar o nosso espírito e formar o nosso caráter.

Por conseguinte, a verdadeira ciência não é feita para cada um. Aquele que a aspira não só deve ter inteligência e instrução, mas, sobretudo, ser sério, sóbrio, prudente, e não se deixar levar pelo capricho da imaginação, por sua vaidade, seus
interesses, sua suficiência. O que deve guiar o verdadeiro amante da verdade é um amor desinteressado por esse objetivo venerado; é a vontade enérgica e constante de jamais parar e de separar rigorosamente o joio do trigo. Quanto mais o homem possui, tanto mais é calmo e nobre e melhor saberá discernir as veredas que o conduzirão à verdade; quanto mais leviano, presunçoso ou apaixonado, tanto mais corromperá com seu hálito impuro os frutos que colherá na árvore da vida.

A primeira condição para chegar ao conhecimento das coisas é, pois, o caráter individual; é por esta razão que, na antiguidade, provas solenes precediam a toda iniciação. Hoje o saber é espalhado sem discernimento e cada um julga poder penetrá-lo; mas, também, mais que nunca a verdade é bem acolhida, enquanto as doutrinas mais estranhas encontram numerosos aderentes. Deveriam, pois, convencer-se de que os espíritos indiferentes, limitados pelas ciências exatas e naturais, levados pela imaginação, ou cheios de impertinência, são impróprios à pesquisa da verdade, e que seria mais prudente reservar esse nobre labor para alguns escolhidos. Entretanto,disposições mais sensatas hoje se manifestam pelo advento do Espiritismo; e, com efeito, os espíritas são homens bem-dispostos para a busca da verdade porque, separando-se do turbilhão geral que arrasta a sociedade, renunciaram por si mesmos às vaidades mundanas, aos princípios superficiais dos livres-pensadores e à superstição oficial dos cultos reconhecidos. Dão prova de sadia independência, de um amor sincero da verdade e de uma tocante solicitude por seus interesses eternos. São estas as melhores disposições morais para abordar os graves problemas da alma, do mundo e da Divindade. Para nosso bem eterno, experimentemos entender-nos e seguir juntos as pegadas que nos conduzirão à via sagrada. Porque temos necessidade de nos ajudarmos reciprocamente para alcançar o objetivo que todos buscamos: o de nos esclarecer apenas sobre o que é real e durável.

Depois das disposições morais que acabamos de indicar, a coisa mais indispensável para bem se engajar na obra delicada da iniciação é o conhecimento do princípio da dualidade da essência da alma, porquanto é ele que constitui uma parte do misterioso segredo da Esfinge35. É uma das chaves da Ciência e, sem a possuir, tornam-se inúteis todos os esforços para o atingir. Por si só, esse princípio da essência da alma encerra, como conseqüências, as noções consideráveis que desejamos adquirir, enquanto todos os princípios secundários até hoje descobertos não se elevam bastante para dominar o vasto horizonte dos
conhecimentos humanos e para lhes abraçar todos os detalhes. Os princípios inferiores afastam os que deles se servem no dédalo de
numerosos fatos que não esclarecem; e é pela insuficiência de seus princípios primordiais que os filósofos se transviaram e se
perderam nas sutilezas arbitrárias de suas doutrinas incompletas.
Fatalmente levaram a confusão onde acreditavam tocar a verdade.
Nessas matérias, mais delicadas que difíceis, só o princípio verdadeiro espalha a luz, resolve facilmente todos os problemas e abre as portas secretas que conduzem ao mais distante santuário. Ora, já sabemos que levamos conosco esse princípio e que, para o descobrir, basta que nos estudemos, com calma e imparcialidade. 35 O outro princípio é a dualidade do aspecto das coisas, que encontraremos mais tarde. Sabemos que esse princípio é a dualidade de nossa essência anímica, de sorte que não nos resta senão desenrolar o fio cuidadosamente, do qual temos o nó mais importante. Não obstante, à medida que avançarmos em nosso estudo psicológico, consultaremos os trabalhos de nossos mais ilustres filósofos, a fim de reconhecer onde falharam e em que ponto suas doutrinas confirmam as nossas próprias pesquisas.

Assim, como observamos acima, parece evidente que tudo quanto em nós se prende à ordem sensível depende da substância de nossa alma, porque é o seu elemento extenso e sólido que recebe todas as impressões exteriores e que se ressente de nossa atividade interior. Com efeito, nossa alma não poderia ser tocada de uma maneira qualquer, sem que, primeiro, apresentasse um obstáculo às oscilações do meio ambiente e, em seguida, às vibrações das emoções que nos afetam intimamente. Portanto, é essa maneira de ser muito natural que explica as nossas relações com tudo o que existe, com o que não somos, com o nosso não-eu moral, intelectual e físico, visível ou invisível. A solidez e extensão de nossa substância não devem, em princípio, ser rejeitadas. Entretanto, não é essa opinião que reina na Universidade e no Instituto. O espiritualismo a nega como absurda, sob o pretexto especioso de que a divisibilidade, que seria a sua conseqüência,implicaria a corruptibilidade da substância. Mas isto não passa de um mal-entendido, pois o que importa à corruptibilidade da natureza anímica é a simplicidade química de sua fluidez corporal e não a sua indivisibilidade mecânica, em falta da qual há mil maneiras de remediar, ao passo que, para ficar na verdade científica, é preciso evitar a admissão de um efeito sem causa, uma impressão possível sem resistência. Assim, a sensibilidade de nossa alma nada ensina à nossa escola espiritualista; liga gratuitamente os sentimentos à razão, atribui as sensações ao organismo material e não dá explicações sobre a conexão dessas diversas faculdades. Eis uma das causas de sua impotência filosófica.

Quanto a nós, a sensibilidade de nossa alma é a prova irrecusável da solidez e da extensão de sua substância, e é a noção dessas propriedades que nos abre um vasto campo de observação. Assim, de início, a extensão e a solidez substancial permitem à nossa alma tomar diferentes formas e encerrar o tipo de todos os órgãos que constituem nosso organismo corporal. Serve, assim, de origem e sustentáculo aos nossos nervos, aos nossos sentidos, ao nosso cérebro, às nossas vísceras, aos nossos músculos e ossos,permitindo que nos encarnemos por meio desta lei da mutabilidade das moléculas corporais, tão conhecida de nossos modernos fisiologistas. Nossos cientistas supõem apenas, e erradamente, em nossa opinião, que essa lei seja efeito de uma força misteriosa da matéria, que se renova, se absorve, se escoa e se forma por si mesma, pois a matéria é inerte e nada forma por sua própria iniciativa. Evidentemente esta mutabilidade é efeito da atividade instintiva de nossa dupla essência anímica, que se acha sob o nosso envoltório. A existência desta lei prova que a nossa encarnação está na ordem da Natureza, visto ser contínua e, ao cabo de uma série de anos, nosso corpo se renova regularmente. A formação do nosso revestimento material, e a nossa encarnação sucessiva explicam-se, muito naturalmente, desta maneira. Mas, além disso, essa substancialidade extensa de nossa alma nos faz compreender igualmente o laço existente entre ela e o nosso corpo, porquanto, não passando o nosso organismo visível de cobertura do nosso organismo substancial, tudo quanto é sentido por um deve repercutir necessariamente no outro. As emoções da substância da alma devem abalar o corpo e o estado deste deve afetar, inevitavelmente, suas próprias disposições morais e intelectuais. Eis o primeiro ensinamento resultante da natureza concreta de nossa substância.

O segundo ensinamento que daí retiramos é que a parte da substância de nossa alma, que não serve de tipo ao nosso organismo material, deve ser a base do nosso senso íntimo, daquele que recebe todas as nossas impressões morais e intelectuais, e que nos põe em contato com a própria substância divina, de sorte que nossa substância recebe as impressões da irradiação de todas as existências e de todas as atividades possíveis e se acha entre a origem primeira de todas as nossas noções. É da mesma maneira que recebemos o conhecimento de nós mesmos. Porque se perguntarmos a um céptico como pode afirmar-se, sem a menor reserva responderá: “É que eu me sinto”, pois o próprio céptico não pode duvidar de suas sensações. Entretanto, sentir-se não é todo o nosso conhecimento: o céptico também não pode negar que sabe que se sente. Ora, a percepção do nosso sentimento é conseqüência de nossa atividade intelectual, o que prova que nossa alma não só é passiva, mas, também, ativa, tem vontade, percebe, pensa e é livre por sua própria iniciativa. Nossos próprios órgãos funcionam sem que tenhamos consciência, de sorte que se é forçado a atribuir à nossa alma um segundo elemento, um elemento ativo, virtual, isto é, uma força essencial, que está atenta quando nossa sensibilidade está desperta e que, por efeito de seu próprio movimento, percebe, pensa e reflete por meio do nosso órgão cerebral, age auxiliada por nossos membros e anima nosso organismo com um movimento involuntário. É pela presença em nossa alma dessa dupla ordem essencial: da ordem substancial passiva e sensível, e da ordem virtual ativa e pensante, que nós sentimos, sabemos e temos consciência de nossa própria personalidade, sem nenhum auxílio do mundo exterior.

Nossa força anímica é o nosso elemento espiritual por excelência, porque não tem, por si mesma, nem extensão nem solidez; só nos é conhecida por sua atividade. Desde que não quer,nem pensa, nem age, é como se não existisse; e se nossa alma não fosse substancialmente concreta, pela virtude de um outro elemento, nosso corpo não teria consistência e não passaria de um amontoado de pó; nem mesmo poderia existir na erraticidade, pois se perderia no nada, a menos que se admitisse, com o espiritualismo, um mistério impenetrável, que lhe permitisse existir sem ter extensão nem solidez, suposição que o Espiritismo e as leis naturais tornam completamente inadmissível. Entretanto, é nossa força essencial que Leibniz considera como sendo nossa substância, sem levar em conta a sua natureza fugidia; e a escola espiritualista francesa o repete, a seu exemplo, sem se deter nessa confusão ilógica. Todavia, não basta chamar força a uma substância para que esta realmente o seja, e considerar essa substância imaginária como sendo o fundo de nosso ser, para que se saia do vazio das abstrações. Uma substância não é tal senão por seu estado concreto, sua extensão e sua solidez, por mais sutil que a queiramos conceber e é o que nossa escola espiritualista se compraz em passar em silêncio. Eis aí uma outra causa de sua impotência moral e filosófica.

Nossa força essencial é o princípio de nossa atividade; ela nos anima, mas não nos constitui. É o princípio de nossa vida,mas não o de nossa existência. Está por toda parte em nossa substância, espalha-se com ela em todo o nosso ser e dele recebe diretamente as impressões, sem o nosso concurso voluntário. É por esta íntima união de nossos dois elementos essenciais que nosso organismo funciona espontaneamente; que nossas sensações despertam a seguir nossa atenção e nos levam, sem outro intermediário, a perceber a causa de nossas impressões; que nossa consciência é um conjunto de sentimentos e de reflexões e que toda noção, seja qual for o seu objeto, exige que o sintamos e o saibamos. Desde então somente nós estamos certos de sua existência. É por este mesmo processo que temos conhecimento do Ser Supremo. Temos a sensação de sua presença por nosso senso íntimo, e nos explicamos esta sensação sublime por nossa razão, porque o ideal do verdadeiro, do bem e do belo está,inicialmente, em nosso coração, antes de nos entrar na cabeça. Os povos selvagens nisto não se enganam; não duvidam de Deus; apenas o imaginam conforme o nível de sua grosseira inteligência,ao passo que vemos nossos cientistas a querelar sobre a sua
personalidade, porque nada pretendem admitir, a não ser pela força de seu raciocínio, e porque se debatem em abstrações, sem ponto de apoio na ordem sensível.

Tal a constituição de nossa alma. Ela se compõe de dois elementos bem distintos entre si e, não obstante, indissoluvelmente unidos; porque jamais e em parte alguma esses elementos se encontraram separadamente: toda substância tem sua força e toda força tem sua substância. Assim, esta dualidade se acha reunida na essência de tudo o que existe; está na matéria, na alma, em Deus. Nós o repetimos: esta distinção na unidade é necessariamente admissível, porque cada um desses elementos está bem caracterizado; porque têm suas propriedades respectivas e sua modalidade categórica; e porque é uma lei universal que um mesmo princípio não pode ter efeitos contrários, que qualidades que se excluem revelam outros tantos princípios particulares. Mas sua unidade não é menos peremptória, porque nenhuma função,nenhuma faculdade, nenhum fenômeno se produz em nós e alhures sem o concurso simultâneo desses dois elementos irredutíveis.

É esta unidade na dualidade constante de nossa alma que nos explica ainda esse fenômeno psicológico importante, a saber: a espontaneidade instintiva de todas as nossas faculdades e de todas as nossas funções, assim como a formação do nosso caráter e da nossa natureza moral íntima. Efetivamente, nossas impressões se nos conservam e se reproduzem involuntariamente, de sorte que, como a substância é o elemento passivo e permanente de nossa alma, é preciso que se lhe atribua a propriedade de conservar as nossas sensações, de concretizá-las em si e de transmiti-las à atenção de nossa força essencial. Sendo essas impressões de toda espécie, forma-se em nós, por esta propriedade conservadora, uma ordem moral, intelectual e prática permanente, que se manifesta por nossa atividade instintiva e espontânea, que nos inspira os sentimentos e as idéias e guia os nossos atos sem o nosso concurso voluntário e, muitas vezes, à nossa revelia. Além disso, esses sentimentos e essas idéias adquiridas se agrupam em nossa alma e nos produzem novas idéias e novas imagens, que estávamos longe de esperar. As funções psicológicas de nossa substância, unida à nossa força essencial, são, assim, multiplicadas e nos formam uma natureza moral, intelectual e prática espontânea, que é o fundo do nosso caráter, a origem de nossas disposições naturais. Desse modo, a nossa substância encerra, em estado latente, ou em potencial, como se exprime a escola, todas as nossas qualidades, todos os nossos conhecimentos, todos os nossos hábitos passados em estado permanente. Em conseqüência, a ela e à sua atividade instintiva é que se deve atribuir a memória, a imaginação, o espírito e os sentidos naturais, bem como a origem de nossas idéias e sentimentos.

Esta ordem substancial instintiva existe incontestavelmente em nossa alma. Cada um se reconhece uma natureza moral permanente, disposições intelectuais e hábitos próprios, que lhe facilitam a carreira e a conduta, se forem bons; ou que impede o sucesso e o arrasta em desvios deploráveis, se forem maus. Só os nossos filósofos não percebem, porque, não admitindo, como já fizemos notar, uma ordem psicológica substancial, condenam-se a atribuir tudo o que é resistente em nossa alma à influência da matéria, e a confundir tudo o que é sensível e vivo com a nossa inteligência. É verdade que Aristóteles reconhecia no homem uma ordem potencial, onde todas as nossas qualidades estão em potencial; mas o define mal e também a confunde com a matéria. Desde então, ninguém mais se ocupou dessa ordem especial, a não ser o Sr. Cousin. Mas este filósofo contemporâneo, não reconhecendo na alma senão a inteligência, só considerou a atividade espontânea, sem lhe buscar a origem no elemento permanente da nossa natureza anímica. Ele a designa como sendo a razão espontânea e instintiva, em oposição à razão refletida, sem se dar conta da contradição existente entre o instinto e a reflexão, qualidades que se excluem e que, evidentemente, não podem pertencer ao mesmo princípio! É por isso que o Sr. Cousin tira apenas conseqüências limitadas desta descoberta, razão pela qual a sua psicologia, como a sua escola, tornou-se uma ciência árida, ilógica e sem grande alcance.

Detenhamos agora o pensamento sobre o conjunto de observações que precedem, pois elas nos fizeram conhecer fenômenos psicológicos até hoje desconhecidos. Elas nos fizeram constatar em nossa alma a existência de duas ordens morais, intelectuais e práticas bem distintas e fortemente caracterizadas: uma se reportando perfeitamente às propriedades particulares de nossa substância, que são a permanência, a extensão e a solidez; a outra, as de nossa força essencial, que são a sua causalidade, sua inextensão e sua intermitência. A primeira é passiva, sensível, conservadora; a segunda é ativa, voluntária e refletida. A união íntima dos nossos dois elementos essenciais produz em nós, além disso, nossa tríplice atividade instintiva, que é o reflexo direto do estado verdadeiro de nossas qualidades e de nossos defeitos naturais.

Com efeito, de um lado, quanto mais sensível, delicada e conservadora for a nossa natureza substancial, e mais viva e enérgica a nossa atividade instintiva, tanto mais puros e elevados serão nossas idéias e sentimentos, justo o nosso bom-senso e fáceis e seguras a nossa memória e a nossa imaginação. Ao contrário,quanto menos aperfeiçoado for o nosso estado substancial, mais lentas e limitadas serão a nossa memória e a nossa imaginação, mais grosseiras as nossas idéias, mais vis os nossos sentimentos e mais obtuso o nosso senso comum. Mas, por outro lado, quanto mais enérgica, constante e flexível a nossa força causadora, mais fortes serão a nossa atenção, a nossa vontade, a nossa virtude e o nosso domínio sobre nós mesmos, mais alcance terão a nossa percepção, o nosso pensamento, o nosso juízo e a nossa razão e, enfim, maior a nossa habilidade e mais honrosa a nossa conduta, porque todas essas qualidades e faculdades derivam de nosso elemento virtual. Ao contrário, quanto mais mole, entorpecida ou rígida a nossa força essencial, tanto mais a nossa brutalidade e a nossa covardia moral e intelectual se manifestarão em plena luz. Desse modo, o nosso valor tanto depende do estado das qualidades e das propriedades de um, quanto do outro elemento de nossa alma.

Tal o quadro sumário que apresenta a constituição íntima de nossa essência anímica, e que nos revela a nossa dupla faculdade de nos sentir e de nos saber. Esse quadro no-la mostra,para começar, em sua unidade viva, pois descobrimos o duplo princípio de sua atividade e de sua passividade, de sua permanência e de sua causalidade, de sua existência no tempo e no espaço, e de sua independência própria e distinta de Deus, do mundo e de seu envoltório material. Ele no-la mostra depois na sua diversidade maravilhosa, pois reconhecemos a origem de suas qualidades e de suas faculdades, de suas funções e de seu organismo, nas propriedades respectivas de nossos elementos essenciais e em seu concurso recíproco. Entretanto, este quadro não passa de um primeiro esboço e, contudo, fácil é nele notar o método de observação rigorosa que seguimos e que é o mesmo que Bacon descobriu, que Descartes introduziu na psicologia, que a escola escocesa aplicou e que a escola espiritualista e eclética observou em toda a sua doutrina. Encontramo-nos, pois, no mesmo terreno que o de toda filosofia séria e, se muitas vezes estamos em desacordo com as nossas celebridades acadêmicas, é que não podemos deixar de crer que a maioria dos fatos de consciência foi por elas mal observados e mal explicados.

Com efeito, o ecletismo espiritualista nos reconhece três faculdades principais: a vontade, a sensação e a razão. Estas faculdades se distinguem do nosso corpo, que é sólido e extenso,de modo que possuímos, necessariamente, uma alma inextensa e espiritual. Feita esta consideração, o ecletismo não pergunta como a nossa alma deve ser constituída para ser sensível, nem se a vontade e a razão, que são ambas ativas, não são duas manifestações de um mesmo princípio virtual. São perguntas que não o inquietam. Ele apenas sustenta que, dessas três faculdades, só a vontade de fato nos pertence, pois só ela é o resultado de uma
força substancial inextensa, que é o princípio primordial do nosso eu. Aos seus olhos, a sensibilidade não passa de efeito do choque resultante da ação que a força do mundo exterior exerce sobre a nossa, por meio do nosso organismo. Mas, também, o ecletismo não pesquisa como a nossa força inextensa se liga ao nosso organismo, nem como, nesse isolamento inextenso, ela pode receber o choque, assim como não explica como podemos ser sensíveis. São pequenos mistérios que não poderiam detê-lo.

A razão, conforme o Sr. Cousin, é a faculdade soberana do conhecimento, mas é impessoal, isto é, não nos pertence, embora dela nos sirvamos. Dizer minha razão, segundo ele, é uma insensatez, pela mesma razão por que não se diz minha verdade. Tal motivo não nos parece muito concludente, mas, provavelmente, a falta é nossa. Com efeito, em seu sistema, a razão é o conjunto das verdades necessárias e universais, tais como os princípios da causalidade, da substância, da unidade, do verdadeiro, etc. A coleção destes princípios forma, pois, segundo ele, a razão divina, da qual participamos pela vontade inefável do Todo-Poderoso. Mas é aí que se deve crer sob palavra, pois não vimos precisamente como uma coleção de verdades, por mais universais que sejam, poderia constituir a razão divina e humana. Vulgarmente as verdades são leis e a razão é uma faculdade. Ora, eu vejo o Sol, mas jamais a faculdade de ver foi tomada pelo Sol, nem pelo menor de seus raios. Eis, pois, aí um novo mistério, a juntar aos precedentes; de sorte que, nessa doutrina, nada se explica por si, nada se liga e nossa alma aí só é representada como um conjunto heterogêneo de faculdades, de qualidades, de funções distintas, ligadas ao acaso,como folhas esparsas que tivessem sido reunidas num volume, sob o título pomposo de Doutrina filosófica do século XIX. O segundo prefácio da terceira edição dos Fragmentos filosóficos lhe trazem um resumo, interessante sob vários aspectos.

De acordo com estas considerações, podem julgar-se as causas que fazem da filosofia espiritualista oficial, apesar de suas boas intenções, uma doutrina bizarra e indigesta. Estaríamos mesmo autorizados a tratá-la mais duramente, se se perdessem de vista os eminentes serviços que ela prestou ao espírito francês, desviando-o de um sensualismo imoral e de um cepticismo desesperador. Aí estavam, evidentemente, as principais preocupações do ilustre filósofo no começo de sua brilhante carreira; e, estudando suas obras notáveis, vê-se que Condillac e Kant foram seus principais adversários. Assim, esta luta é a parte mais importante de seus trabalhos. Ao contrário, seu próprio sistema nos parece muito defeituoso e sua moral, sua teodicéia e sua ontologia contêm numerosos pontos muito controvertidos. A verdade é uma flor tão delicada! o menor sopro do erro a emurchece em nossas mãos e a reduz a um pó pernicioso e ofuscante. É, sobretudo, no calor do combate ou na emoção da ambição que se torna difícil conservar a calma de espírito e a delicadeza do sentimento de evidência, de modo que o homem preocupado é facilmente arrastado a ultrapassar os limites da verdadeira sabedoria. Felizmente o Criador nos reservou fatos, circunstâncias, acontecimentos providenciais, bastante chocantes para nos reconduzir ao bom caminho. E, certamente, as doutrinas e os fatos sobre os quais se funda o Espiritismo estão neste número. Que os nossos grandes e sábios filósofos não o repilam sob o fútil pretexto de superstição. Que os estudem sem prevenção! Neles reconhecerão a natureza extensa e sólida de nossa alma, sua preexistência e sua perpetuidade. Nele encontrarão uma moral suave e salutar, apropriada a reconduzir todo o mundo ao bem. Se, então, seu espírito pedir para dele se dar conta, que se atirem francamente à obra, que examinem cientificamente os seus princípios e conseqüências. E, então, talvez o princípio da dualidade da essência da alma lhes apareça em todo o seu esplendor e em toda a sua força, porque, parece-nos, ele lança uma viva luz sobre os segredos íntimos do nosso ser. É o que continuaremos a examinar dentro de pouco tempo.

F. Herrenschneider
R.E. , novembro de 1863, p. 439